Segurança pública: a outra face das UPPs

10/05/2010 comentários
Em 21 de novembro de 2008, o Morro Santa Marta, em Botafogo, na Zona Sul, foi ocupado em caráter permanente pela Polícia Militar sem nenhum tiro disparado. Naquela localidade, foi instalada uma unidade policial, chamada Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), comandada por uma oficial da PM, a capitã Priscila. Com a capitã, cerca de 130 homens passaram a fazer parte do cotidiano da comunidade, onde o varejo armado de drogas sumiu da noite para o dia. A ação foi anunciada pelo Governo do Estado como medida importante de política de segurança pública, para solucionar um dos principais focos da questão da violência urbana na cidade, que, segundo os discursos oficiais, estaria nas favelas. A partir daí, esse modelo de policiamento seria propagandeado como o paradigma governamental e midiático de segurança no Rio.

É fundamental entender o contexto em que as UPPs são apresentadas. Com a tortura de repórteres do jornal O Dia em 14 de maio de 2008 no Batan, localidade dominada por milicianos, a mídia comercial bombardeou a sociedade com notícias que antes eram engavetadas sobre os abusos e violências das milícias, numa postura muito mais corporativa do que efetivamente politizada. Com a opinião pública favorável, foi aprovada a CPI das Milícias, cujo relatório final de 18 de novembro de 2008 chegou ao indiciamento de 225 milicianos, prisão de vereadores e deputados e, sobretudo, desmistificação do tema. Antes da CPI, vários governantes, entre os quais o atual prefeito do Rio de Janeiro Eduardo Paes, defendiam publicamente essas organizações criminosas. A CPI, no entanto, levou à falência o projeto velado dos governos de controle violento das periferias, que apresentava as milícias como “alternativa” ao varejo armado de drogas. É neste contexto que surgem as UPPs como uma “nova” solução. Assim como o debate apresentado para a sociedade até 2008 era sobre “Milícias ou Tráfico?”, hoje, o debate apresentado é “UPP ou Tráfico?”.

De 2008 pra cá, as UPPs foram levadas para outras favelas. Na Zona Oeste do Rio, foram ocupadas a Cidade de Deus, única favela de porte na Zona Oeste que não era dominada por milicianos, e o Batan, que era dominada pelos milicianos que torturaram os dois repórteres do jornal O Dia. Na Zona Sul, além do Santa Marta, foram ocupados o Chapéu Mangueira, Babilônia, Tabajaras, Cabritos, Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, no Leme e em Copacabana. O morro da Providência também foi ocupado, situado na Zona Portuária, tão ambicionada pelo trilionário Eike Batista e por Paes para o projeto “Porto Maravilha” (que de maravilha não tem nada). E, na olímpica rota Barra-Tijuca/Maracanã, estão ocupados os morros do Borel, Casa Branca, Chácara do Céu, Catrambi, Indiana, Morro da Cruz e Formiga.

Esse trajeto já fala por si só. O conceito de segurança pública que dirige esse processo surge de um ponto de vista posicionado na Zona Sul sociológica (Barra, bairros da zona sul e Tijuca), inspirado pelo empreendimento turístico esportivo (para Olimpíadas e Copa) e veiculado na mídia comercial. Não é à toa que as áreas ocupadas seguem todas a mesma lógica, qual seja: controlar através da polícia os territórios ligados a grandes empreendimentos e à especulação imobiliária.

Além dos indícios territoriais, há também as demonstrações de conteúdo dessas políticas. Em nenhuma das comunidades, por exemplo, foram criados mecanismos de participação popular efetivo nas decisões políticas. Normalmente, é conferido um maior peso à opinião dos moradores do asfalto nos arredores das favelas do que aos moradores policiados dia e noite.

Ademais, o porta-voz governamental nas favelas ocupadas é um policial militar, o que foge a sua competência no Estado
Democrático de Direito. Nesse contexto, enquanto chegam determinações de deveres (como a cobrança de luz, o fim dos “cat-nets”, a aplicação veemente da lei do silêncio ainda que sem reclamantes, entre outros cumprimentos legais estranhos às comunidades em tela), os direitos não chegam com a mesma velocidade. No Santa Marta, por exemplo, a iluminação pública demorou a chegar. Ainda há casas prestes a cair (não visíveis do asfalto), enquanto o governo já gastou milhões com a construção de muros e pintura das casas visíveis da Rua São Clemente. São apenas sintomas da falta de uma proposta democrática e participativa de urbanização do Santa Marta. Na Babilônia, a ausência de um reservatório de água tem deixado as torneiras dos moradores secas e, mesmo após um ano de ocupação, não há coleta de lixo dentro da comunidade. Ou seja, quando o governador anuncia que “o Estado está chegando a essas localidades” a frase é sinônimo de “a polícia militar está chegando a essas localidades”. E só.

Outro ponto pouco abordado pela mídia comercial apesar de muito presente nas favelas ocupadas são os abusos policiais. Com a chegada da polícia, as atividades culturais foram limitadas. Os bailes funk, proibidos. A alegação para tal medida é a avaliação das autoridades de que eventos com concentração de pessoas podem ser perigosos, argumento muito utilizado em outros tempos no Brasil. A questão é: perigosos para quem? Em 2009, lutando contra a criminalização do funk na cidade, a Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (APAFunk) organizou manifestações pela liberdade cultural através de rodas de funk na Cidade de Deus e Santa Marta durante o dia. O nome das rodas era “Paz sem voz é medo!”. Ambas tiveram que ser longamente negociadas com as autoridades policiais e só puderam acontecer diante da mobilização e pressão pela garantia dos direitos políticos constitucionais. “O asfalto está aceitando bem a UPP, mas a favela está tendo que se adaptar forçadamente a ela, sem poder participar. O Governo implementa uma política e quer que imediatamente todo mundo bata palmas, sem ouvir as críticas. Mas a crítica é importante para melhorar. O funk não pode ser proibido”, diz MC Leonardo, presidente da APAFunk.

O cerceamento à comunicação, cultura e trabalho não para por aí: junto das UPPs veio o fechamento de lan-houses. Além disso, aumentam os índices de conflitos entre policiais e moradores, com um maior registro de desacato nas delegacias locais, o que demonstra uma falta de preparo da polícia para mediar conflitos. Nos últimos dois meses, o número de desacatos chegou a mais de 20 nas comunidades ocupadas. O morador acusado tem como acusador o policial militar. E, em todos os casos, a testemunha de acusação é outro policial militar. Ou seja, a Polícia Militar está longe de representar para muitos moradores de favelas um “pacificador”.

Em estudo recente, a pesquisadora Ana Paula Miranda é taxativa ao afirmar que ainda faltam critérios mais eficazes de avaliação do projeto das UPPs. Segundo ela, “o que se vê é uma grande necessidade de se dizer que está dando certo. E desta forma não estão tratando o tema com a seriedade necessária”. Ana Paula fala do aumento de 2008 para 2009 do número de homicídios e de autos de resistência na Área Integrada de Segurança Pública que engloba a favela Santa Marta. O número de autos de resistência passou de oito em 2008 para 18 em 2009 e o de homicídios de 18 para 29 no mesmo período. Esse aumento se deu justamente no ano em que a UPP já estava instalada. “Eles dizem que todos os índices de violência estão caindo, mas os dados públicos não dizem isso”, comenta a pesquisadora.

A mídia comercial, por sua vez, tem publicado pesquisas atestando o “sucesso” da política. “Um instituto que não é sério tem realizado pesquisas de opinião a um custo baixíssimo e os jornais acabam comprando. Numa delas eles falam da aprovação da quase totalidade da população em relação à UPP. Mas eles fazem pesquisa por telefone fixo e sabemos que a grande maioria dos moradores de favelas não tem telefone fixo”, questiona Ana Paula. Além disso, ela não concorda com a forma como as críticas às UPPs têm sido tratadas. Segundo ela, as observações sobre problemas das UPP’s “são tidas como uma crítica de uma pessoa que torce para dar errado. Se você critica, você é contra. Essa lógica é péssima, a crítica serve também para melhorar o que tem sido feito”.

Nesse contexto, o rapper Fiell, morador do Santa Marta, tem se juntado a outros moradores para reivindicar direitos de sua comunidade. Em meio a diversas iniciativas, o grupo lançou em parceria com instituições de Direitos Humanos e com o Mandato do deputado estadual Marcelo Freixo a Cartilha Popular Abordagem Policial. Segundo o agente cultural, “o lançamento dessa cartilha não é contra ninguém, é apenas a favor do morador. Essa cartilha foi lançada por causa de inúmeros problemas de abuso policial, como PMs homens revistando moradoras, invasão de casas e até mesmo proibição de eventos culturais. Nossa intenção é valorizar o trabalho do policial que respeita os direitos do morador”. A capitã Priscila, que comanda o policiamento na área, não quis dar declarações sobre a cartilha em seu lançamento.

Por sua vez, o jornal O Globo anuncia em manchete que “UPP agrada a moradores do asfalto e valoriza imóveis”. Com a valorização do espaço urbano a partir do controle sem participação das áreas pobres, ocorre o aumento dos aluguéis, que somado à chegada das cobranças de luz, corte do cat-net, proibição de espaços de lazer da comunidade, entre outras medidas restritivas, tem gerado um forte aumento do custo de vida dos pobres. Isso num contexto de ausência de políticas públicas de garantia de direitos básicos tem gerado a chamada “remoção branca”, uma forma de expulsar os pobres para áreas mais afastadas e inchadas da cidade, “liberando” território urbano para a especulação imobiliária.

Para o movimento social e os defensores dos direitos humanos, é problemática a postura do governo em não procurar absorver as críticas. O que acaba ocorrendo é a promoção de uma sensação de segurança, e não efetivamente de Segurança Pública. A partir daí surgem iniciativas que confundem “investir em segurança” e “injetar recursos na secretaria de segurança e armas”.

Em contrapartida, o lema “Segurança Pública é garantir direitos” tem movido a militância de direitos humanos e de favelas em busca de um outro debate sobre o Rio de Janeiro, um debate no qual o pobre seja tratado como titular de direitos, e não como suspeito a priori. A segurança pública num regime democrático deve ser pensada a partir do ponto de vista do morador das áreas policiadas. As questões que se colocam precisam repercutir: por que a PM ainda usa fuzis em locais onde já não mais há varejo armado de drogas? Se o problema é a violência, por que não investir em inteligência para barrar as rotas de chegada de armamentos na cidade? Por que a solução para nossos problemas ainda precisa passar por uma iniciativa militarizada? Por que não há uma proposta séria de urbanização participativa e cidadã nas favelas, com acesso a direitos básicos? Por que o debate honesto sobre o fracasso da política de guerra às drogas e a necessidade da legalização vem sendo escondido?

*Guilherme Pimentel é estudante de Direito e membro da equipe do Mandato Marcelo Freixo

Mais Informações: Marcelo Freixo
 
 
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