Um ano após a lei estadual 5.265, que dificulta a realização de bailes funk, profissionais denunciam a repressão policial a cantores, compositores e até a quem simplesmente gosta de ouvir o ritmo popularizado nas favelas do Rio de Janeiro. Na outra ponta, surge a Associação dos Profissionais e Amigos do Funk, cujo objetivo é unificar e politizar a categoria que leva para as pistas centenas de milhares de jovens todos os fins de semana.
Cidade de Deus, domingo, 14 de junho. Chego à rua GG, que na verdade é um espaço vazio, de terra batida, entre cinco ou seis edifícios. Circundado por bares e mercearias, o lugar deve ter o tamanho de uma quadra poliesportiva, talvez um pouco maior. São três da tarde, faz sol e as crianças se divertem. Brincam de pula-pula e de bola. Não resisto e acabo jogando altinha com eles. De repente, a bola cai na lama, suja pouco, quase nada. Mesmo assim um pequeno a toma pela mão e diz: “peraí, tio”. O menino, magrinho, uns 12 anos, esfrega a bola no meio-fio e completa: “pra não sujar sua calça”.
Olho pra trás e vejo um policial militar se aproximando. Daí a dez minutos aparece uma blazer da PM, que promove um escândalo inominável: com fuzis – que são armas de guerra - apontados para fora, o carro faz uma ronda passando por vezes muito perto das crianças que ali brincavam.
Enquanto isso a turma montava a aparelhagem de som no final da rua. Ainda era dia quando o sargento Alcântara foi até o DJ e afirmou: “dez horas tem que acabar”. Com um fuzil semiautomático a tira-colo, ele fazia cumprir a ordem do comando da polícia, que se baseia numa lei (ver quadro) que na prática inviabiliza a realização de bailes funk – a autoria é do ex-chefe de Polícia Civil e ex-deputado estadual Álvaro Lins (PMDB-RJ), cassado e preso sob acusações de formação de quadrilha, facilitação de contrabando e lavagem de dinheiro.
Na verdade, o DJ nem ficou tão aborrecido com o policial. Este era o primeiro evento de funk realizado na CDD, berço desse ritmo no Brasil, desde a ocupação policial, em novembro do ano passado. Aqui nasceram letras como “O povo tem a força, só precisa descobrir / se eles lá não fazem nada, faremos tudo daqui” – verdadeiro hino da classe trabalhadora –, escrita por Kátia e Julinho Rasta e popularizada pelos MCs Cidinho e Doca. Neste domingo, por insistência da Associação de Profissionais e Amigos do Funk (Apafunk), o comando da PM autorizou a realização de uma roda de funk, prestigiada por gente de todas as idades, incluindo meu parceiro de altinha.
A Lei 5.265, de junho de 2008, encerrou – direta ou indiretamente – bailes em pelo menos 60 casas no Estado, segundo Tojão, dono da equipe de som Espião Shock de Monstro. Isso dificulta muito a vida de quem vive do funk – cerca de 10 mil pessoas no Rio de Janeiro, segundo as contas da Apafunk. São DJs, MCs, dançarinos,compositores e empresários, mas também técnicos de som, motoristas, auxiliares e toda uma gama de trabalhadores que, na década de 80, segundo o antropólogo Hermano Vianna em seu livro O mundo funk carioca, mobilizavam mais de um milhão de jovens (cerca de 20% da população da capital fluminense) em 700 bailes todos os finais de semana em torno dessa mistura de soul (música negra estadunidense,cujo maior representante foi James Brown), miami bass (batida eletrônica) e percussão africana. O resultado é o batidão que hoje está entranhado na cultura do Rio de Janeiro, sobretudo nos espaços populares.
A professora Adriana Facina, do Departamento de História da UFF, acompanhou de perto o funk carioca durante um ano e meio para sua pesquisa de pós-doutorado. Entrevistou mais de cem pessoas, esteve em duas dezenas de favelas e foi a bailes da zona sul à zona norte. Após todo esse trabalho de campo, ela acredita que o que existe é uma perseguição à população afrodescendente.
“Os que hoje querem proibir o funk são herdeiros históricos daqueles que, no passado, quiseram calar os batuques que vinham das senzalas”. A propósito, o brasão da Polícia Militar do RJ ainda ostenta os ramos de cana e café, produtos que sustentaram a economia brasileira – movida a trabalho escravo – num passado não muito distante.
“Como é comum acontecer numa sociedade de herança de três séculos de escravidão, a música diaspórica, elemento fundamental de identidade negra, forma comunicacional principal dos modos de vida, dos valores e de denúncia da população afro-descendente, é vista com grande desconfiança pelas elites”, complementa Adriana.
Além da dificuldade para a realização de bailes, o que termina por concentrar os eventos nas grandes casas de show ou por marginalizar os pequenos produtores, a perseguição ao funk extrapolou para a violência contra o cidadão favelado. Naquele domingo, na Cidade de Deus, ouvi denúncias como a proibição de jovens pintarem o cabelo de determinada cor ou de ouvirem funk dentro de suas próprias casas.
Um cantor e compositor com quem estive, e que prefere não se identificar por medo de represália, contou que um dia estava reunido com amigos numa esquina da favela. Chegou uma guarnição da polícia e perguntou o que estavam fazendo. “Compondo”, respondeu. “Então eles mandaram a gente dispersar e tomaram o CD com a batida de fundo”, disse entre irritado e envergonhado pela humilhação sofrida.
O tenente-coronel Luigi Gatto, comandante do 18º Batalhão de Polícia Militar, afirma que desconhece a proibição sobre a tinta no cabelo; em relação à música dentro das casas, diz que a polícia atua baseada na lei do silêncio e quando algum vizinho reclama. Quanto à proibição dos bailes, declara: “Não conheço baile funk em comunidade que não tenha tráfico de drogas, porte ilegal de armas, corrupção de menores e apologia ao crime”, mas afirma que se o evento for realizado dentro da lei 5.265 ele não se opõe.
O comandante da PM faz uma avaliação positiva da ocupação da favela: “Hoje a Cidade de Deus já está inserida no bairro de Jacarepaguá, os serviços públicos (luz, dragagem, coleta de lixo) estão funcionando, o espaço público foi devolvido pras pessoas que moram ali. Isso tudo era domínio do tráfico. Hoje em dia não há mais estado de exceção, a ordem pública foi restaurada”.
Organização do movimento funkeiro
Foi com o objetivo de enfrentar as dificuldades que MC Leonardo decidiu fundar a Associação dos Profissionais e Amigos do Funk. O compositor, nascido e criado na Rocinha, ganhou projeção nacional ao lado de seu irmão, MC Júnior, com letras como “Rap das Armas” e “Endereço dos Bailes”. “O Funk é uma das poucas diversões com preços acessíveis, criada dentro da favela, pelos favelados. O funk está sendo proibido de tocar no Rio de Janeiro!”, denuncia Leonardo.
Além de criticar muito a lei 5.265, o cantor relata outras formas de perseguição a quem gosta de ouvir o ritmo. “No interior do Rio a polícia está pegando e quebrando CDs de quem escuta funk”. Leonardo também rebate as acusações de que o ritmo é pornográfico. “O mercado pornográfico é o que mais cresce no mundo, dizer que o funk é o responsável por isso é no mínimo estranho. Uma parte do funk é o reflexo disso, não o espelho”. Mr. Catra, que tem feito até cinco shows por dia no Rio de Janeiro mas segue invisível aos olhos das corporações de mídia, também respondeu a estas acusações contra o funk no documentário “Sou feia, mas to na moda”: “Sacanagem é o coroa comendo a criancinha na novela das oito”.
O MC da Rocinha defende a unificação do movimento em torno da conscientização política. “Eu cobro dos artistas que eles usem a sua arte como ferramenta de mudança contra as injustiças que eles sofrem. O funk é preto, favelado, discriminado e por isso deveria ter um discurso mais engajado que todas as outras artes”, afirma. Muitas vezes as pessoas julgam o funk por aquilo que ouvem na mídia comercial, sem saber que ali prevalece o funk comercial, despolitizado, do jeito que o sistema capitalista gosta. Leonardo tem corrido os gabinetes da Assembléia Legislativa em busca de apoio para revogar a Lei 5.265 e aprovar um novo texto que reconheça e valorize o caráter cultural do funk.
Outro nó apontado por Leonardo é o duopólio exercido pelos empresários Rômulo Costa e DJ Marlboro, que segundo as contas da APAFunk controlam mais de 90% do mercado. Os dois possuem as maiores produtoras, editoras e equipes de som. E mais: mantêm programas em rádios (FM ODIA e 98FM, respectivamente) onde, segundo Leonardo, só divulgam seus próprios artistas.
“Usam concessão pública em benefício próprio”, acusa. MC também critica o modelo de contrato feito com os artistas. “Pagam 150 reais ao garoto e mais nada”. E pra aumentar o volume do batidão, dispara:
“Estão sempre ao lado dos governos, fazem campanha, fizeram campanha para o [governador] Sérgio Cabral (PMDB)."
Rômulo Costa não respondeu ao recado deixado em seu telefone celular. DJ Marlboro se defende:
“Meu contrato artístico é igual ao de todas as editoras no mundo. O autoral é 75% do autor e 25% da editora. O artístico, que não exige obrigatoriedade, varia de 4 a 10%. Na produção, eu pego o garoto que recebe 50 reais na favela pra fazer a montagem com um computador e levo para o estúdio, dou oportunidade a ele de aprender com equipamento profissional, coloco o nome dele no direito conexo e ainda pago 150 reais, três vezes mais do que ele recebe na favela. Agora, tem produtores que são mais caros, a gente vive no capitalismo, cada um recebe de acordo com o retorno que dá. A música é um negócio”, diz.
Marlboro também discorda da existência de um duopólio.
“Ninguém é obrigado a assinar contrato comigo ou com o Rômulo. Tem vários meios, o cara pode ir pro meio da praça, para a internet... Agora, eu não vou colocar no meu programa de rádio artista de outras gravadoras, ninguém faz isso. Monopólio é quando não tem escolha. A gente não proíbe ninguém de ter iniciativa”.
Sobre as idéias dos MCs Júnior e Leonardo, ele declara:
“Eles acham que tem que ser comunismo, que todo mundo tem que ganhar igual. Querem o funk socialista”.
Talvez isso explique porque o Rap da Igualdade tenha sido declinado por Marlboro, que, segundo Leonardo, não quis divulgá-lo com o seguinte argumento:
“Não é a hora de malhar a elite”.
Burocracia do Preconceito
A lei estadual 5.265, de junho de 2008, determina que festas rave e bailes funk devem ser informadas com 30 dias de antecedência à Secretaria de Segurança Pública mediante a apresentação dos seguintes documentos: contrato social; CNPJ; comprovante de tratamento acústico; anotação de responsabilidade técnica das instalações de infra-estrutura do evento, expedida por autoridade municipal; contrato da empresa de segurança autorizada pela Polícia Federal; comprovante de instalação de detectores de metal e câmeras; comprovante de previsão de atendimento médico e nada a opor da Delegacia Policial, do Batalhão de Polícia Militar, do Corpo de Bombeiros e do Juizado de Menores.
Além disso, o pedido de autorização deve informar a expectativa de público, o número de ingressos postos à venda, o nome do responsável pelo evento, a capacidade da área de estacionamento e previsão de horário de início e término do evento, que não poderá exceder 12 horas. Banheiros deverão ser disponibilizados na proporção de dois (um masculino e um feminino) para cada grupo de cinqüenta pessoas.
São exigências que tornam alto demais o custo de realização de um baile e impõem uma burocracia que inviabiliza o trabalho dos pequenos produtores.
Eu só imploro a igualdade pra viver, doutor
No meu Brasil (que o negro construiu)
Eu só imploro a igualdade pra viver, doutor
No meu Brasil
A injustiça vem do asfalto pra favela
Há discriminação à vera
Chega em cartão postal
Em outdoor a burguesia nos revela
Que o pobre da favela tem instinto marginal
E o meu povo quando desce pro trabalho
Pede a Deus que o proteja
Dessa gente ilegal, doutor
Que nos maltrata e que finge não saber
Que a guerra na favela é um problema social
(Trecho do Rap da Igualdade, MC Dolores)
Créditos:
Caros Amigos - Julho/2009
Matéria: Marcelo Salles
Foto: Fernanda Chaves
http://www.blogger.com/www.carosamigos.com.br
Divulgação do Conteúdo Autorizado por Marcelo Salles
comentários: 1 Postar um comentário
agosto 25, 2009
Concordo plenamente que o funk sempre foi discriminado, só pelo fato de ter vindo da favela.
Mas hoje eu mesmo como funkeiro deixo de escutar as musicas, pelo fato que para mim o funk não existe mais, tudo hojé apelado para a pornografia, e para as drogas.
Sinto muita falta dos tempos antigos onde os mcs, tinham letras inteligentes que falavam do dia dia das comunidades, das dificuldades vividas, de amor e tudo mais. Opoio esse movimento funk como cultura, mas espero que vocês consigam resgatar o funk de raiz e traga de volta o funk para a comunidade. E parem de falar pornografia, e construam letras como as feitas antigamente. Curto muito funk mas só antigos, tenho quase mil musicas antigas. Quero rever o funk nascer!
Parabéns pelo movimento, traz esperaça que ainda voltaremos a escutar boas letras. Meu nome é junior email juniormanutencao@hotmail.com
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